domingo, 23 de junho de 2013

CABELOS, FIOS, TEIASSSSS


O uso de cabelos em diferentes culturas


Os cabelos são da maior importância para os mais diferentes povos, em diferentes regiões e nas diferentes épocas. Têm a mesma origem embrionária que as unhas e, como elas, sendo formados por células queratinizadas, não se decompõem facilmente. O fato de continuarem a crescer mesmo depois da morte do indivíduo favorece o surgimento de fantasias de mortos que se levantam do túmulo para atacar os vivos. Muitos povos acreditam que os cabelos e as unhas continuam relacionados ao indivíduo mesmo depois de cortados; por isso, são considerados tabu, não devendo ser cortados nem jogados fora. Na quimbanda podem ser utilizados para a realização de atos de bruxaria.
Associada à idéia de cabelos = virilidade, vem a do corte dos cabelos como emasculação, mutilação, humilhação. Isso é encontrado no mito bíblico de Sansão, na China e entre alguns índios da América do Norte. Em todo o mundo a entrada para o estado monástico inclui o corte dos cabelos como sinônimo de renúncia e sacrifício. Uma variante é o uso da tonsura pelos clérigos. No caso de criminosos, cabelos cortados rente marcam a humilhação, publicam o delito e expõem socialmente a pessoa. Criminosos e loucos tinham os cabelos raspados quando recolhidos às instituições, como forma de tirar-lhes a identidade. Para as pessoas submetidas à quimioterapia, a perda dos cabelos é muito difícil de ser aceita; à conscientização da perda da vitalidade soma-se a sensação de humilhação e exposição.
O corte e a disposição da cabeleira demarcam a personalidade, a função social ou uma mudança no tipo de vida. É também algo civilizatório: cabelos e crianças não podem crescer desordenadamente, precisam ser cortados para que ganhem forma.
Para muitos povos, o primeiro corte dos cabelos é ocasião de importante cerimônia para proteger contra os maus espíritos. Entre os incas, o primeiro corte de um príncipe herdeiro ocorria quando ele completava dois anos. O futuro rei recebia seu nome definitivo e se tornava uma pessoa; perdia os cabelos ligados à vida pré-natal, dissociando sua força vital da de sua mãe, o que era confirmado pelo desmame. O corte dos cabelos simbolizava a cesura do nascimento psíquico, o rompimento do estado simbiótico da primeira infância, permitindo que se alcançasse a individuação e uma identidade própria.
Nossos índios do Xingu raspam os pêlos do corpo, incluindo as sobrancelhas, desde muito cedo, para não parecerem macacos, mas os cabelos são considerados sensuais. Quando ocorre a morte de alguém muito próximo, as mulheres os cortam, expressando assim como essa perda as mutilou. Entre os carajás, a duração do luto será determinada pelo crescimento dos cabelos.
Muito freqüentemente encontramos a fantasia de lindos cabelos como idênticos à capacidade de atração, situação na qual quem atrai detém o poder, já que faz aflorar o desejo do outro. A idéia de provocação sexual ligada à cabeleira feminina– desejo e sensualidade tomados como pecado– está na origem, na tradição cristã, do fato de as mulheres não poderem entrar na igreja de cabeça descoberta e, na tradição muçulmana, de não poderem se apresentar assim em público; entre os judeus ortodoxos, a partir do casamento elas não se apresentam com os cabelos à mostra, passando a usar perucas ao sair. Também entre eles, para os meninos, os cachos laterais (o peiot) são mantidos sem nenhum corte, assim como, posteriormente, a barba.
Cabelos desgrenhados estão associados ao luto, como expressão de dor e desespero, e, nos rituais das lojas das sociedades secretas, à não submissão às regras sociais. Entre os hippies, os cabelos desalinhados eram um sinal de liberdade e de não aceitação dos valores vigentes. Cabelos black power foram utilizados como afirmação da negritude; já o tererê, enfeite colorido entremeado aos cabelos, tem uma conotação de retorno às origens.
CABELOS E CONTEXTO: Vivemos numa sociedade que privilegia a juventude como sinal de potência e vitalidade; o envelhecimento é visto como castração e, dessa forma, não há possibilidade de considerar o amadurecimento e a sabedoria– alcançados com o aprender com a experiência– como algo bom. Na cultura do rápido e descartável, não há tempo para assimilação; procura-se a todo custo destruir o mundo mental responsável pela percepção e pela consciência da finitude.
A palavra têmpora está associada a tempo e indica a região da cabeça onde geralmente aparecem os primeiros cabelos brancos, que mostram que o tempo passou; sinal de aproximação da morte, precisam ser rapidamente pintados para ocultar este horror: Somos mortais! Quando olhamos à nossa volta, damo-nos conta de uma quantidade imensa de produtos para cabelos, de tipos de escovas, pentes e técnicas, conforme o que se deseje obter. O número de pessoas que se submete a isso tudo não é nada pequeno e o tempo despendido, enorme, medida da importância que os cabelos têm para nossa economia psíquica.
Dentro desse quadro, seja numa situação narcísica de exagerado culto à vaidade, seja de cuidados com a vida, os cabelos têm posição de destaque. Ao entrar num salão de beleza, algumas pessoas estão curvadas, cabisbaixas, silentes, deprimidas. Conforme seus cabelos vão sendo cortados, a postura vai se alterando: levantam o corpo e a cabeça, sorriem para a imagem no espelho e para a cabeleireira. Os cabelos, tendo crescido, perderam o formato; com isso a pessoa sente que perdeu a beleza, a identidade. Com o novo corte, restabelece-se o contorno que marca os limites, restaura-se a pele psíquica, ela se recupera, se re-encontra.
Entre as jovens, geralmente os cabelos são mantidos longos, tratados, coloridos; podemos pensar em cabelos como substitutos do pênis. Observamos, no entanto, que quando se casam, e principalmente quando têm filhos, elas os cortam, abrindo mão desse poder, dessa representação de onipotência e bissexualidade. Ao se tornarem capazes de serem mulheres e mães, com limitações e possibilidades reais, os longos cabelos perdem o sentido, passando a ser vistos como dando trabalho demais.

CABELOS E A PSICANÁLISE: Freud (1923/1976) nos ensina que o ego resulta das sensações da superfície do corpo– portanto, da pele–, como uma diferenciação do id no contato com a realidade, representando as superfícies do aparelho mental.
A partir das sensações corporais que o bebê vivencia (através dos contatos físicos e psíquicos que tem principalmente com a mãe), vai se estabelecendo uma primeira noção de pele, algo que envolve e demarca um limite do corpo e do eu, que contém as partes do corpo e da personalidade e que permite que as trocas aconteçam (Bick, 1967/1991). Anzieu (1985/1988, p. 26) aponta: os bebês mamíferos se agarram aos pêlos de suas mães como forma de alcançar segurança física e psíquica []. É agarrando-se ao seio, mãos, corpo e roupas da mãe que [o bebê] desencadearia como resposta condutas atribuídas a um utópico instinto maternal. A catástrofe que persegue o psiquismo nascente do bebê humano seria a do separar-se e depois– assinala mais tarde Bion, de quem retomo a expressão– isso o mergulha em um terror sem nome.
Ele nos remete à proposição de Bowlby (1958), da existência de uma pulsão de apego; esta explicaria a observação dos etologistas de que os bebês, tanto de aves como de mamíferos, se desesperam com a ausência da mãe tanto quanto os bebês humanos, e de como isso não está ligado à alimentação ou à oralidade, pois os filhotes apenas ficam junto delas ou as seguem. Essa pulsão tem por finalidade proteger os filhotes de predadores, mantendo a mãe a uma distância segura, e é estendida aos machos que protegem o grupo.
Anzieu fala também das idéias desenvolvidas por Hermamm (1930), de como os filhotes de mamíferos se agarram aos pêlos dos pais e de como o desaparecimento dos pêlos no corpo humano tornou aleatória a satisfação dessa pulsão e transformou as áreas cobertas de pêlos nas zonas erógenas favoritas da pulsão sexual. Em decorrência, os cabelos foram erotizados, considerados belos e atraentes.
Lembra ainda como Harlow (1958), estudando variáveis da relação mãe-bebê, realizou experimentos com bebês macacos e suas reações a mães de pano e mães de arame, observando como eles sempre preferiam as primeiras como objeto de apego. O reconforto alcançado com o contato com a maciez de uma pele foi sempre maior do que com aleitamento, calor físico ou acalanto. Anzieu propõe também um desejo tanto de incorporar como de ser incorporado pela pele, anterior à incorporação oral, e, supomos, possivelmente fetal.
De nossas origens como primatas vem a necessidade de agarrar-se aos pêlos para não cair, mantida como reflexo neonatal. Podemos dizer que os cabelos, dada a nossa perda dos pêlos, oferecem suporte anatômico para isso, atendendo a essa necessidade. Estamos, portanto, diante de aspectos muito primitivos, ligados à nossa herança filogenética, a um agarrar-se aos pêlos-cabelos para não correr risco de queda.
Na posição autista-contígua (Ogden, 1986/1989), a criança tem uma captação sensorial, concreta, procurando aderir à superfície do objeto para alcançar a sensação de segurança; as defesas são por identificação adesiva (Bick, 1967/1991), e a vivências de bidimensionalidade (Meltzer, 1975/1979); posteriormente, com o desenvolvimento da noção de pele-superfície para a de pele-bolsa, que contém as partes tanto do corpo como da mente (Anzieu, 1985/1988), surgirá a noção da tridimensionalidade e conseqüentemente a possibilidade do uso de defesas por identificação projetiva (Klein, 1946/1982).
Francis Tustin (1990) nos lembra que o recém-nascido provavelmente passa por estados em que estão presentes terrores atávicos, associados ao medo inato de animais predadores; eles asseguraram a sobrevivência da espécie, e, embora rudimentares, continuam presentes. Esses terrores são atenuados por uma mãe que, no estado de preocupação materna primária (Winnicott, 1958/1978), envolve o bebê num continente que amortece os impactos. Quando isso não ocorre, o bebê fica exposto a esses impactos e é obrigado a reagir a eles numa tentativa de se proteger, ficando preso a um universo de sensações táteis de superfícies; isso é conseguido através do desenvolvimento de defesas autistas. Sendo este um estado protomental, não podemos falar em fantasias, mas talvez em sensações físicas de terror.
Se relacionarmos as sensações terroríficas de um cair sem fim à nossa herança como primatas, teremos de pensar nos padrões inatos esperados pelo bebê e como nesse contexto pêlos-cabelos têm a função de proteger a vida e diminuir a ansiedade. Ogden (1986/1989, p. 151) esclarece essas questões:
Para Klein, o objeto interno tem sua origem nas pré-concepções herdadas associadas às pulsões. Não se herda a pré-concepção mental do objeto, mas a estrutura para a representação, e se dá forma à representação mental quando o bebê encontra os objetos concretos. [] O bebê não prevê o seio concreto no sentido de ter uma imagem mental dele antes de encontrá-lo; por outro lado, ele o reconhece quando o encontra porque é parte de suaordem interna biologicamente estruturada que estava silenciosamente disponível para lhe dar forma [tradução livre da autora].
Se tomarmos seio como abarcando todas as funções maternas, tanto as concretas como a capacidade de continência e de sonhar (Bion, 1961/1991), o cabelo também estará aí incluído.
Segundo a hipótese que formulo, uma das pré-concepções que nossa espécie desenvolveu é que existe algo– pêlos-cabelos– que nos protegerá de cair; assim, a função de defesa biológica dos cabelos é estendida às nossas angústias mais precoces. A partir disso, sua importância fará parte do imaginário humano, aparecendo nos hábitos e costumes de cada povo, em seus contos e mitos, e conforme a história de cada indivíduo.
Mas o que pode ocorrer com respeito a cabelos quando mãe e bebê se re-encontram depois da separação imposta pelo parto? Quando uma jovem mãe amamenta ou afaga seu filho, muito provavelmente seus cabelos caem sobre o bebê. Temos uma conjugação: o reflexo de preensão, que está filogeneticamente relacionado à sobrevivência e à proteção contra as ansiedades de um cair sem fim, e a importância que os cabelos têm para o imaginário materno. Que objeto é oferecido ao bebê pelas fantasias inconscientes da mãe no jogo de projeções/introjeções que essa relação necessariamente contém e que se acasala com as pré-concepções existentes?
Num trabalho de anos de observação, Souza-Dias verificou que bebês cujas mães tentaram desesperadamente abortar apresentam intensa reação a estranhos, quase nenhuma capacidade para tolerar frustrações e se agarram aos cabelos delas com um ódio intenso (comunicação pessoal, março de 2006). Fazemos a suposição de que expressam sua luta desesperada para sobreviver e um ódio a esses cabelos-mãe que não oferecem sustentação; estes tentaram lançá-los no abismo da morte, e, ainda assim, são tudo o que têm para se segurar....
 
 

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