sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A BIBLIOTECA DE BABEL



A BIBLIOTECA DE BABEL





O UNIVERSO (que outros chamam a Biblioteca)
compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais,
com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas
baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores:
interminavelmente.



A distribuição das galerias é invariável. Vinte
prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos
dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário
normal.



Uma das faces livres dá para um estreito
vestíbulo, que desemboca em outra galeria, idêntica à primeira e a todas. À
esquerda e à direita do vestíbulo, há dois sanitários minúsculos. Um permite
dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades físicas. Por aí passa a escada
espiral, que se abisma e se eleva ao infinito.



No vestíbulo ha um espelho, que fielmente duplica
as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é
infinita (se o fosse realmente, para quê essa duplicação ilusória?), prefiro
sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito…



A luz procede de algumas frutas esféricas que
levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que
emitem é insuficiente, incessante. Como todos os homens da Biblioteca, viajei
na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez do catálogo de
catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo,
preparo-me para morrer; a poucas léguas do hexágono em que nasci.



Morto, não faltarão mãos piedosas que me joguem
pela balaustrada; minha sepultura será o ar insondável; meu corpo cairá
demoradamente e se corromperá e dissolverá no vento gerado pela queda, que é
infinita. Afirmo que a Biblioteca é interminável.

Os idealistas argúem que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço
absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço. Alegam que é inconcebível
uma sala triangular ou pentagonal. (os místicos pretendem que o êxtase lhes
revele uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua,
que siga toda a volta das paredes; mas seu testemunho é suspeito; suas
palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus). Basta-me, por ora, repetir o
preceito clássico: “A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer
hexágono, cuja circunferência é inacessível”.



A cada um dos muros de cada hexágono correspondem
cinco estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme;
cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas;
cada linha, de umas oitenta letras de cor preta.



Também há letras no dorso de cada livro; essas
letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas. Sei que essa
inconexão, certa vez, pareceu misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja
descoberta, apesar de suas trágicas projeções, é talvez o fato capital da
história), quero rememorar alguns axiomas.



O primeiro: a Biblioteca existe ab aeterno. Dessa
verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente
razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do
acaso ou dos demiurgos malévolos; o Universo, com seu elegante provimento de
prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de
latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de um deus.



Para perceber a distância que há entre o divino e
o humano, basta comparar esses rudes símbolos trémulos que minha falível mão
garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais,
delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.



O segundo: O número de símbolos ortográficos é
vinte e cinco[1]. Essa comprovação permitiu, depois de trezentos anos, formular
uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que
nenhuma conjectura decifrara: a natureza disforme e caótica de quase todos os
livros.



Um, que meu pai viu em um hexágono do circuito
quinze noventa e quatro, constava das letras M C V perversamente repetidas da
primeira linha ate à última. Outro (muito consultado nesta área) é um simples
labirinto de letras, mas a página penúltima diz Oh, tempo tuas pirâmides.



Já se sabe: para uma linha razoável com uma
correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e
de incoerências. (Sei de uma região montanhosa cujos bibliotecários repudiam o
supersticioso e vão costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de
procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão… Admitem que os inventores
da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas sustentam que essa
aplicação é casual, e que os livros em si nada significam. Esse ditame, já
veremos, não é completamente falaz).



Durante muito tempo, acreditou-se que esses
livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou remotas. É verdade
que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem
assaz diferente da que falamos agora; é verdade que algumas milhas à direita a
língua é dialetal e que noventa andares mais acima é incompreensível.



Tudo isso, repito-o, é verdade, mas quatrocentas
e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por
dialetal ou rudimentar que seja. Uns insinuaram que cada letra podia influir na
subsequente e que o valor de M C V na terceira linha da página 71 não era o que
pode ter a mesma série noutra posição de outra página, mas essa vaga tese não
prosperou. Outros pensaram em criptografias; universalmente essa conjectura foi
aceite, ainda que não no sentido em que a formularam seus inventores.



Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono
superior[2] deparou com um livro tão confuso quanto os outros, porém que
possuía quase duas folhas de linhas homogêneas. Mostrou o seu achado a um
decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros
lhe afirmaram que em iídiche. Antes de um século pôde ser estabelecido o
idioma: um dialeto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe
clássico.



Também decifrou-se o conteúdo: noções de análise
combinatória, ilustradas por exemplos de variantes com repetição ilimitada.
Esses exemplos permitiram que um bibliotecário de gênio descobrisse a lei
fundamental da Biblioteca. Esse pensador observou que todos os livros, por
diversos que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula
as vinte e duas letras do alfabeto.



Também alegou um fato que todos os viajantes
confirmaram: “Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos”. Dessas
premissas incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas
prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos
símbolos ortográficos (numero, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja,
tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas.



Tudo: a história minuciosa do futuro, as
autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares
de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração
da falácia do catalogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o
comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o
relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as
interpolações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde
escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de
Tácito.



Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava
todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os
homens sentiram-se senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema
pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: em algum hexágono. o
Universo estava justificado, o Universo bruscamente usurpou as dimensões
ilimitadas da esperança.

Naquele tempo falou-se muito das Vindicações: livros de apologia e de profecia,
que para sempre vindicavam os actos de cada homem do Universo e guardavam
arcanos prodigiosos para seu futuro. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce
hexágono natal e precipitaram-se escadas acima, premidos pelo vão propósito de
encontrar sua Vindicação.



Esses peregrinos disputavam nos corredores
estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas,
jogavam os livros enganosos no fundo dos túneis, morriam despenhados pelos
homens de regiões remotas. Outros enlouqueceram… As Vindicações existem (vi
duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez não imaginarias) mas
os que procuravam não recordavam que a possibilidade de que um homem encontre a
sua, ou alguma pérfida variante da sua, é computável em zero.



Também se esperou então o esclarecimento dos
mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verosímil
que esses graves mistérios possam explicar-se em palavras: se não bastar a
linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca produzirá o idioma inaudito
que se requer e os vocabulários e gramáticas desse idioma. Faz já quatro
séculos que os homens esgotam os hexágonos…



Existem investigadores oficiais, inquisidores. Eu
os vi no desempenho de sua função: chegam sempre estafados; falam de uma escada
sem degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o
bibliotecário; ás vezes, pegam o livro mais próximo e o folheiam, á procura de
palavras infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.



A desmedida esperança, sucedeu, como e natural,
uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono
encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis
afigurou-se quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as
buscas e que todos os homens misturassem letras e símbolos, até construir,
mediante um improvável dom do acaso, esses livros canônicos.



As autoridades viram-se obrigadas a promulgar
ordens severas. A seita desapareceu, mas na minha infância vi homens velhos que
demoradamente se ocultavam nas latrinas, com alguns discos de metal num fritilo
proibido, e debilmente arremedavam a divina desordem.

Outros, inversamente, acreditaram que o primordial era eliminar as obras
inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas,
folheavam com fastio um volume e condenavam prateleiras inteiras: a seu furor
higiênico, ascético, deve-se a insensata perda de milhões de livros. Seu nome é
execrado, mas aqueles que deploram os “tesouros” destruídos por seu frenesi
negligenciam dois fatos notórios.



Um: a Biblioteca é tão imensa que toda redução de
origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada exemplar é único,
insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de
milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que apenas diferem por uma letra
ou por uma virgula. Contra a opinião geral, atrevo-me a supor que as
consequências das depredações cometidas pelos Purificadores foram exageradas
graças ao horror que esses fanáticos provocaram. Urgia-lhes o delírio de
conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato menor que os
naturais; onipotentes, ilustrados e mágicos.



Também sabemos de outra superstição daquele
tempo: a do Homem do Livro. Em alguma estante de algum hexágono (raciocinaram
os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de
todos os demais: algum bibliotecário o consultou e é análogo a um deus.



Na linguagem desta área persistem ainda vestígios
do culto desse funcionário remoto. Muitos peregrinaram á procura d’Ele. Durante
um século trilharam em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado
hexágono secreto que o hospedava? alguém propôs um método regressivo: Para
localizar o livro A, consultar previamente um livro B, que indique o lugar de
A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o
infinito…



Em aventuras como essas, prodigalizei e consumi
meus anos. Não me parece inverosímil que em alguma prateleira do Universo haja
um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem – um só, ainda que seja
há mil anos! – o tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a
felicidade não estão para mim, que sejam para outros. Que o céu exista, embora
meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num
instante, num ser, Tua enorme Biblioteca Se justifique.



Afirmam os ímpios que o disparate é normal na
Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é quase
milagrosa exceção. Falam (eu o sei) de “a Biblioteca febril, cujos fortuitos
volumes correm o incessante risco de transformar-se em outros e que tudo
afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira”.



Essas palavras, que não apenas denunciam a
desordem mas que também a exemplificam, provam, evidentemente, seu gosto
péssimo e sua desesperada ignorância. De fato, a Biblioteca inclui todas as
estruturas verbais, todas as variantes que permitem os vinte e cinco símbolos
ortográficos, porém nem um único disparate absoluto. Inútil observar que o
melhor volume dos muitos hexágonos que administro intitula-se Trono Penteado, e
outro A Cãibra de Gesso e outro Axaxaxas mlö.



Essas proposições, à primeira vista incoerentes,
sem dúvida são passíveis de uma justificativa criptográfica ou alegórica; essa
justificativa é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso
combinar certos caracteres

dhcmrlchtdj

que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em alguma de suas línguas
secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba
que não esteja cheia de ternuras e de temores; que não seja em alguma dessas
linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias.



Esta epístola inútil e palavrosa já existe num
dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos – e
também sua refutação. (Um numero n de linguagens possíveis usa o mesmo
vocabulário; em alguns, o símbolo biblioteca admite a correta definição ubíquo
e perdurável sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide
ou qualquer outra coisa, e as sete palavras que a definem tem outro valor.
Você, que me lê, tem certeza de entender minha linguagem?)



A escrita metódica distrai-me da presente
condição dos homens. A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos
fantasmagórica. Conheço distritos em que os jovens se prostram diante dos
livros e beijam com barbárie as páginas, mas não sabem decifrar uma única
letra.

As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que inevitavelmente
degeneram em bandoleirismo, dizimaram a população. Acredito ter mencionado os
suicídios, cada ano mais frequentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas
suspeito que a espécie humana – a única – está por extinguir-se e que a
Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel,
armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.



Acabo de escrever infinita. Não interpolei esse
adjetivo por costume retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é
infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os
corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar – o que é
absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites esquecem que os abrange o número
possível de livros.



Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo
problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a
atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos
volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a
Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.





  ESTILO E ESSENCIA Estilo pode incluir moda, design, formato, ou aparência, incluindo por exemplo: Estilos reais e nobres Em botâ...