Arthur Bispo do Rosário perambulou numa delicada região entre a
realidade e o delírio, a vida e a arte. No refúgio de sua cela no Hospital
Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, o paciente psiquiátrico produziu
mais de mil obras consagradas no mercado internacional de arte contemporânea.
Criou um universo lúdico de bordados, assemblages, estandartes e objetos
durante os mais obscuros períodos da psiquiatria – época dos eletrochoques,
lobotomias e tratamentos violentos aplicados para o controle de crises. Sem se
dar conta, Bispo não só driblou os mecanismos de poder no manicômio como
utilizou sobras de materiais dispensados no hospital para criar suas obras,
inventando um mundo paralelo, feito para Deus.
Dizia-se um escolhido do todo-poderoso, encarregado de reproduzir o
mundo em miniaturas. Eram suas “representações”, afirmava. Paradoxalmente, as
obras, que deveriam representar tudo o que havia na Terra acabariam
reconhecidas como peças de vanguarda, incluídas por críticos em importantes
movimentos artísticos. Sua arte genial chegou a representar o Brasil na
prestigiada Bienal de Veneza, além de correr museus pelo mundo, a exemplo do
Jeu de Paume, em Paris. Curiosamente, em vida, Bispo recusava o rótulo de
“artista”, dado o caráter divino de sua tarefa. Mas a potência de sua obra
ignora limites e até hoje atravessa fronteiras, transgredindo convenções e
levando espectadores de todo o mundo ao encantamento.
A história da “loucura” de Bispo remonta à noite de 22 de dezembro de
1938, quando, aos 29 anos, conduzido por um imaginário exército de anjos, andou
pelas ruas do Rio com um destino certo: ia se “apresentar” na igreja da
Candelária, no centro. Peregrinou pelas várias igrejas enfileiradas na rua
Primeiro de Março e terminou no Mosteiro de São Bento, onde anunciou a uma
confraria de padres que era um enviado, incumbido de “julgar os vivos e os
mortos”. Detalhes dessa narrativa, meio real meio ficcional, constam de um
estandarte bordado por Bispo, uma das belas peças de sua vasta obra, que
mistura autobiografia e autoficção. É nesse estandarte que Bispo registra a
frase-síntese de sua vida e obra Eu preciso destas palavras – Escrita. A
palavra tinha para ele status extraordinário, por isso seus bordados estão
repletos de nomes de pessoas, trechos poéticos, mensagens.
O dia 24 de dezembro de 1938 foi um divisor de águas psíquico para Bispo. Era Natal, ele se convertia na figura de Jesus Cristo, mas acabaria sob o domínio da psiquiatria. Interditado pela polícia dois dias após a sua “anunciação”, foi enviado ao Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, onde rótulos não tardariam a marcar sua ficha: negro, sem documentos e indigente.
O dia 24 de dezembro de 1938 foi um divisor de águas psíquico para Bispo. Era Natal, ele se convertia na figura de Jesus Cristo, mas acabaria sob o domínio da psiquiatria. Interditado pela polícia dois dias após a sua “anunciação”, foi enviado ao Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, onde rótulos não tardariam a marcar sua ficha: negro, sem documentos e indigente.